O homem de preto parte 1

Sob a pesada e fria chuva o homem encapuzado parou, fitando sem esboçar reação a porta de madeira escura da casa. Como que conhecendo um processo natural de entrada, deu três sonoras pancadas na porta, fazendo ressoar com um eco sinistro para dentro da mesma. Aguardou durante alguns segundos, virando com a mão esquerda a pequenina bola de cristal que jazia em seu bolso.

Com um rangido, a porta começou a abrir, puxando a atenção do homem para a parte de dentro da construção. O ser encapuzado estava em frente à uma mansão de aparência intrincada e rebuscada, remontando a antigas construções do século 19. A entrada era alardeada por grandes colunas de madeira branca que, propositalmente ou não, tinham ramos de visgo crescendo sobre si.

Dando um firme passo, o homem pisou na calçada da varanda, simultâneo a um ruidoso trovão que entrecortou o céu noturno. Porém, sem pestanejar, o viajante entrou no recinto, retirando o capuz úmido, revelando cabelos loiros e olhos castanhos. Não era muito alto, mas tinha um porte atlético, estando aparentemente em plena forma física.

Ao seu lado estava um homem velho e calvo, com grandes e grisalhas costeletas e que usava um fraque levemente desbotado. Curioso, perguntou:

– E você, quem seria?

– Pode me chamar de Mordomo, senhor.

Por um instante, uma aura de sinistra dúvida pairou sobre a cabeça do recém chegado, que continuou:

– Bom, você pode me chamar de Henry.

Assentindo, o mordomo fez uma leve saudação com a mão direita e fez sinal para que Henry lhe entregasse seu sobretudo. Ainda que a contragosto, o visitante retirou seu negro casaco e o deu ao mordomo que virou-se para um corredor adjacente do hall em que estavam e sumiu.

– EI, POR ONDE eu… – quis gritar Henry, mas desistindo conforme o mordomo sumia.

Por um momento, parou e coçou levemente seus cabelos, como que em um ato para fazer com que lembra-se para onde ir, embora nunca estivera ali. Tendo tempo sobrando, Henry admirou o lugar onde estava. O hall de entrada da mansão era todo esculpido em algum tipo de madeira clara que bruxuleava levemente graças à luzes fracas acomodadas na parede quase como candelabros. Diante de si, o corredor por onde entrara se dividia em 3, sendo que o da esquerda era o único que tinha luz, apesar do mordomo ter seguido o caminho da direita.

Como uma mariposa que bate numa lâmpada, Henry dirigiu-se para o corredor da esquerda. Este caminho continuava como corredor por cerca de 4 metros e então acabava em uma nova porta de madeira. Era decorado com belos entalhes de na madeira da parede, exibindo formas que lembravam folhas ao vento.

Ao se aproximar da porta, Henry ouviu um leve tilintar, como se vidro tocado fosse. Curioso, levou a mão à maçaneta de ferro e abriu a porta, revelando um novo cômodo.

Era uma sala de jantar, curiosamente toda acarpetada de uma espécie de tecido vermelho sangue, o que tornava a visão do lugar como um todo um tanto quanto difícil. Acostumando rapidamente seus olhos, Henry visualizou no centro do aposento uma grande mesa retangular, feita de um material esbranquiçado, que ele julgou sendo marfim. Por sobre a mesma, pratos e travessas aos montes se espremiam por espaço, recheadas de comidas fartas e atrativas.

Entretanto, sentado na ponta da mesa estava uma figura curiosa. Usando um terno negro e um chapéu branco, um homem sentava-se em uma cadeira de material similar ao da mesa, segurando com a palma de ambas as mãos a ponta de uma bengala de madeira escura. Sem levantar seu rosto, o homem gesticulou para que Henry se aproximasse.

Ainda levemente tonto devido às cores fortes do local, iluminado por lâmpadas em cada vértice das paredes, Henry deslocou-se até a mesa, parando perto da figura de terno preto. Novamente, o homem fez um sinal, ordenando (ou seria sugerindo?) que Henry se sentasse. Novamente o visitante acatou.

Henry, esfomeado devido a viagem, esticou a mão direita para pegar um brownie que parecia esperar-lhe à mesa. Contudo, ao pô-lo na boca, sob o olhar do homem de preto, seu gosto lembrou-lhe imediatamente cimento, fazendo com que engolisse o pedaço que mordiscara apenas por educação.

Engolindo em seco, Henry, decidiu que era hora de fazer as devidas apresentações:

– Bem, acredito que o senhor seja o autor do convite, não é?

O homem não demonstrou resposta, apenas movimentou a cabeça levemente em direção a Henry, que disse:

– Olha, eu estou muito curioso sobre essa visita. Eu não lembro de um tio por aqui que seja tão rico assim… – apontando para a o teto.

O visitante olhou para a mesa com curiosidade, e naquele momento, ouviu:

– Meu caro, o que pensas sobre a vida?

A voz era quase doce, lembrando-o de um tenor que ouvira no rádio do carro há tempos. Uma voz que transparecia confiança, mas não era agressiva nem tampouco demasiadamente calma. Henry olhou para o anfitrião, mas ele permanecia estático e, de um todo, a voz parecia não combinar com sua aparência. Contudo, só haviam os dois ali, logo, Henry o respondeu:

– Acho que deve ser vivida plenamente. Acho que todos temos nosso destino. Basta achá-lo.

Novamente a figura permaneceu em silêncio.

Passados alguns instantes, Henry novamente olhou para a refeição posta e ouviu:

– E se você pudesse voltar ou adiantar o tempo, o que faria?

– Acho que precisaria de tempo para refletir – disse Henry levemente assustado, procurando a origem da voz – O tempo é algo complexo demais para decisões imediatistas.

De novo, o ambiente foi tomado pelo silêncio e, novamente, ao olhar a mesa, Henry escutou uma pergunta:

– E se você pudesse escolher onde, como e por quem morreria, acharia justo?

– Ok, ok – disse Henry, ironizando – você deve ser um bom ator, mas…

Subitamente, o homem de preto abriu a boca e de lá uma cavernosa e grave voz se fez entender:

– Henry, antes que tudo termine você entenderá, mas não apresse nosso sistema, pois ele precisa se aprumar… – o homem deu uma inspirada funda e rouca e continuou – O que vê aqui, você criou, embora não por sua vontade. Seu destino está traçado e nada irá mudar. Viva sua jornada, veja seu mundo e venha até mim.

Embasbacado, Henry apenas limitou-se a falar:

– Como assim? Eu vim por uma herança!

– Há uma herança, mas não como você imagina, criança… – disse o homem, levantando-se da cadeira.

O homem de preto era estranhamente alto e magro. Todavia, apesar da magreza anoréxica, seu porte inspirava medo em Henry, fazendo com que andasse levemente para trás na cadeira esbranquiçada.

Caminhando lentamente até uma porta quase escondida na ponta da sala oposta à entrada, o único som audível era uma soma de seus passos e do TOC TOC irritante de sua bengala. Por fim, o homem disse:

– Venha até mim; vou te esperar… Mas não demore, o tempo não vai parar. Seu destino o aguarda, vá ao seu encontro.

Ao abrir a porta, o homem de preto deu um último olhar a Henry, que tremendo balbuciou:

– Como você se chama??

O homem, como que curioso pela pergunta, respondeu em um calmo tom:

– Não se lembra de mim? Me chamo Morte…

 

Gabriel Reinehr

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